Vagas de garagem em condomínios
Elaborado por: Paulo Gustavo Sampaio
Andrade
Para quem gosta de números, aqui vai um bom motivo para continuar lendo
este ensaio. 25% dos julgados a respeito de condomínios se referem a um único
assunto: garagem. E não é difícil descobrir a razão. Trata-se de um tema que
comporta várias possibilidades e posicionamentos. A sua regulamentação é
escassa, baseada em grande parte em construções doutrinárias e
jurisprudenciais. A Lei 4591/64, que regulamenta os condomínios em edificações,
foi promulgada, depois de sofrer cortes e vetos, sem conter qualquer disciplina
atinente a garagem. Só com a Lei 4864/65 é que foram acrescentados três
parágrafos ao art. 2º daquela Lei, regendo o assunto.
O condomínio em edifícios é formado por dois elementos: as unidades
autônomas e a área comum. O termo “unidade autônoma” compreende qualquer
unidade habitacional (apartamento, flat, chalé etc.) ou
profissional (sala, loja, escritório, conjunto etc.) É o elemento principal,
objeto de propriedade exclusiva. Já a área comum (alicerces, hall de entrada, portaria, jardins, escadas, corredores
etc.) é considerada acessório da unidade autônoma, e objeto de co-propriedade.
Cada condômino tem uma fração ideal da área comum, na medida de sua unidade
autônoma. É vedado o uso exclusivo de áreas comuns por um só dos condôminos
(cf. art. 3º, in fine).
A REGRA: GARAGEM COMO
PROPRIEDADE EXCLUSIVA ACESSÓRIA
A vaga de garagem não se encaixa nem como área comum nem como unidade autônoma. É um tertium genus. Vejamos o §1º do referido art. 2º, um dos três acrescidos pela Lei 4864:
"O direito à guarda de veículos nas garagens ou locais a isso
destinados nas edificações ou conjuntos de edificações será tratado como objeto
de propriedade exclusiva, com ressalva das restrições que ao mesmo sejam
impostas por instrumentos contratuais adequados, e será vinculada à unidade
habitacional a que corresponder, no caso de não lhe ser atribuída fração ideal
específica de terreno."
Observe-se que a lei não se refere à vaga de garagem em si, mas ao
“direito à guarda do veículo nas garagens”. É uma relação de continente e
conteúdo. Em vez de se referir ao objeto da propriedade, a lei fala em uma das
faculdades implícitas no direito. Não é motivo para considerar o direito à
garagem como mero direito real de uso. Isto identificaria a garagem com uma
parte comum, concedida para uso exclusivo a um condômino, o que conflitaria com
a vedação da utilização exclusiva das partes comuns por qualquer condômino.
Forçoso é admitir o direito à garagem como um direito de propriedade exclusiva,
embora limitado por restrições típicas do condomínio.
A garagem, assim, é objeto de propriedade exclusiva (assim como é a
unidade autônoma), mas acessória da unidade autônoma (tal como a fração ideal
da coisa comum).
Caio Mário da Silva Pereira, autor do anteprojeto da Lei 4591, criticou
a ideia de que um bem restrito pelo caráter da acessoriedade seja objeto de
exclusividade. Com a devida venia, entendemos serem
estes caracteres independentes entre si. É certo que, na acepção em que a
estamos analisando, a garagem não tem registro imobiliário próprio, mas é
impossível entendê-la como propriedade comum. As restrições na sua utilização
se devem à sua natureza de parte integrante de um edifício condominial.
A garagem, assim vista, não pode ser alienada separadamente da unidade a
estranhos ao condomínio. A ratio é simples: como é
acessório, a que não cabe fração ideal, o estranho que a adquirisse ficaria sem
fração ideal; logo, numa posição sem direitos nem deveres, incompatível com a
idéia de condomínio. Nada impede, porém, que a garagem seja alugada ou cedida a
estranhos (desde que a Convenção não proíba), pois aí não há transferência de
propriedade.
Seguindo o mesmo raciocínio, a alienação da garagem a outro condômino é
perfeitamente possível. Há apenas a transferência de um acessório de uma
unidade para outra. O mesmo ocorre com o condômino que vende a sua unidade
autônoma, fazendo reserva da garagem para si, desde que tenha outra unidade
autônoma no mesmo edifício, a que se adere a garagem reservada. Vejamos o que
diz o art. 2º, §2º, da Lei:
"O direito de que trata o §1º deste artigo poderá ser transferido a
outro condômino, independentemente da alienação da unidade a que corresponder,
vedada a sua transferência a pessoas estranhas ao condomínio."
É indispensável, porém, que estas alterações sejam averbadas nas
escrituras das unidades. Por outro lado, se um condômino, ao alienar sua
unidade autônoma, não inclui nem exclui a garagem na escritura de
transferência, entende-se esta como incluída, por força da regra de que “o
acessório segue o principal”.
A Convenção de Condomínio é o instrumento hábil para fazer a demarcação
das vagas na garagem (art. 9º, §3º, a), incluindo seus
acessos e especificação de vagas para carros grandes e pequenos. Outro modo é
por assembléia geral extraordinária, em deliberação unânime dos condôminos,
alterando a Convenção ou o Regimento interno, que deve ser levada a registro
imobiliário para valer contra terceiros. A simples ocupação das melhores vagas
pelos primeiros habitantes ou a atribuição de vagas por ato do síndico não tem
nenhum efeito jurídico.
EXCEÇÃO 1: GARAGEM
COMO PROPRIEDADE EXCLUSIVA PRINCIPAL
Há, contudo, casos em que a garagem não é o acessório, mas o principal. Um deles é o do edifício-garagem, onde a própria garagem é a unidade autônoma, com registro imobiliário próprio, visto que não há apartamento, sala, etc. a que corresponda. É o que decorre da interpretação a contrario sensu do supracitado §1º, in fine: a vaga de garagem a que não corresponda uma unidade autônoma terá uma fração ideal própria. O §3º do mesmo artigo não deixa dúvidas:
"Nos edifícios-garagens, às vagas serão atribuídas frações ideais
de terreno específicas."
O outro caso é o dos edifícios mistos de garagens e unidades
profissionais e habitacionais. Comuns nos grandes centros urbanos, nestes
prédios há, por decisão do instituidor, dois condomínios independentes entre
si. Um funciona como edifício-garagem; o outro é um condomínio de unidades
residenciais ou comerciais, desprovido de garagens. Desta forma, p.ex., pode-se
adquirir um escritório sem comprar uma garagem, ou comprando três delas. Para o
escritório, haverá uma parte comum correspondente; para a garagem, também. Cada
um destes tem registro imobiliário próprio.
Em ambos os casos, a garagem é livremente alienável a condôminos ou a
terceiros, dado o seu caráter de principal.
EXCEÇÃO 2: GARAGEM
COMO ÁREA COMUM
Nos edifícios em que há menos vagas que unidades autônomas, é possível que a Convenção determine que a área da garagem seja comum. A cada hora, quem encontrar vaga para seu veículo, pode estacioná-lo. Admite-se, porém, a reintegração de posse se, por longos anos, somente os mesmos condôminos vêm usando as vagas.
Sendo área comum, é vedada sua alienação a estranhos. Além disso, devido
à indeterminação sobre qual é a vaga alienada, o alheamento se estenderia a
toda a superfície da garagem — e o sistema brasileiro não admite o direito de
superfície.
Também não cabe o usucapião da garagem comum por um dos condôminos, por
força da vedação à utilização exclusiva da área comum por um condômino (art.
3º, in fine). Todavia, cremos que nada impede o
usucapião por estranhos, transformando esta garagem em propriedade exclusiva
independente do edifício em condomínio.
Em alguns edifícios, a área dos pilotis (pilares de
sustentação da base do edifício) é definida como sendo comum. Mas é lícito que,
pela Convenção ou pela anuência de todos os condôminos, seja destinada para
garagem de alguns deles. Pode-se convencionar que os beneficiados paguem
aluguel ao condomínio.
Não é admissível que se considere de uso comum a garagem em condições de
abrigar automóveis em número correspondente ao dos condôminos, se ela não é
expressamente incluída nem excluída da propriedade exclusiva no contrato.
GARAGEM COMO
PROPRIEDADE EXCLUSIVA ACESSÓRIA PRIVILEGIADA
PROPRIEDADE EXCLUSIVA ACESSÓRIA PRIVILEGIADA
Sendo insuficientes as vagas, outra solução é que a Convenção estabeleça um método (sorteio ou acordo), pelo qual alguns dos condôminos ficam com estas vagas. O direito à garagem é um privilégio, a que deve corresponder um encargo: um acréscimo na fração ideal.
Esta não é mais uma exceção, mas uma confirmação da regra geral pela
qual a garagem é propriedade exclusiva e acessória da unidade autônoma, embora
neste caso seja um privilégio de apenas alguns dos condôminos.
Trata-se de hipótese distinta da do condomínio misto. A garagem aqui é
acessório, sem registro próprio, e não principal. Aqui, não cabe falar em
alienação da garagem a estranhos, pois esta não representa uma fração própria,
mas um acréscimo na fração da unidade a que corresponde. Além disso, seria um
contra-senso alienar a garagem a terceiros se estas não bastam nem aos
condôminos.
CONCLUSÃO
O problema da garagem é multifacetado. Normalmente, a vaga de garagem em condomínios é um acessório da unidade autônoma e é objeto de propriedade exclusiva do condômino. Porém, nos edifícios-garagem e nos mistos, a garagem pode ser a própria unidade autônoma, caso em que é o bem principal. Em edifícios com menos vagas que unidades autônomas, a Convenção pode estabelecer que a área destinada a estacionamento não pertença a nenhum dos condôminos em particular, mas a todos como área comum.
O assunto, na verdade, nada tem de complicado. As situações possíveis são bem caracterizadas e definidas. Os julgados sobre o tema são muitos, mas de uma notável uniformidade de diretrizes. Ou seja: o assunto em si não deixa margem a dúvidas.Contudo, a redação dos dispositivos legais sobre o tema deixa a desejar, por sua falta de clareza e objetividade. Uma redação menos atribulada da lei evitaria o surgimento de controvérsias em sua raiz, ou seja, no arbítrio das partes.